Sunday, November 26, 2006

A beleza do simples



Gosto de mato. Nunca morei na roça, sou urbana até a medula, mas repito, gosto de mato. Se esse gosto está impregnado nos meus genes ou se está escrito na história de uma vida passada, não sei. O fato é que a cada dia me sinto mais atraída e encantada pela vida no interior.

Recentemente fiz uma viagem de carro pelas estradas da Bahia. Viagem simbólica, cheia de significados. Meu companheiro de jornada e guia turístico, pessoa muito especial que eu amo demais, compartilhava comigo uma volta às origens, e teve a carinhosa sensibilidade de me levar por uma estradinha esburacada e sinuosa, para eu ver o mato... Cortando a barriga da montanha, passamos por fazendas, plantações, riachos, cerquinhas, vaquinhas e casebres. Um por do sol de tirar o fôlego nos reverenciou naquela tarde e me deu saudade de uma vida que não vivi.

Sempre fico impressionada com a auto-suficiência da natureza... ela está lá, soberana e independente, sem se importar com a nossa felicidade ou tristeza, tranqüilidade ou preocupação. Se temos planos, pressa ou sonhos, tanto faz. As montanhas, as árvores, os campos e os rios se bastam. Sofrem e se alegram com o ritmo da natureza, se transformam ao sabor do sol ou da chuva, do calor ou do frio, se reconstroem num ciclo eterno sobre o qual não temos o menor controle ou interferência. Isto é, se a nossa estupidez não alterar esse ritmo perfeito com alguma queimada, desmatamento ou contaminação. Mas isso é conversa para outra hora. O que conta é que eles estão sempre lá, senhores do tempo... As árvores guardiãs, aquelas enormes que ficam sozinhas no meio dos descampados, na sua sabedoria vegetal contemplam as eras, indiferentes ao ir e vir do homem. Se agitam com o beijo do vento, se ressentem da crueldade do sol, se alimentam da essência da chuva e dominam o espaço e o tempo, mesmo sem saírem do lugar. Estão lá por todo o sempre, guardando o mundo. As águas que correm poderosas acima ou abaixo do solo, carregam histórias que nem compreendem, cantam músicas que nenhum instrumento consegue reproduzir, lavam e levam tudo por onde passam, numa corrida às vezes serena, às vezes insana, mas sempre incessante. Não gosto da idéia de que a natureza está no mundo pra servir ao homem. Não, acho que na verdade ela não está nem aí pra nós humanos. Ela é, simplesmente. Tão simples, que se torna indescritivelmente bela.

E nesse universo se insere o homem do campo – o tabaréu, o caipira, o roceiro, palavras carregadas de preconceito... Por que? Certamente ele tem muito mais sabedoria do que nós, bichos cosmopolitas. Pra começar, ele não precisa de muito pra ser feliz: o vestido novo florido, a festa da padroeira, Bruno e Marrone no radinho de pilha, a posição certa da antena de TV no telhado, a conversa animada das comadres na porta de casa, a dose de cachaça na venda depois de um dia de trabalho... pra que mais? Além disso, ele tem um entendimento dos ciclos naturais da vida que lhe permite ficar horas assuntando, assuntando, diante de uma cachoeira, pra depois ir pra casa dormir e sonhar com uma bicicleta que não quebre.

Nessa minha viagem conheci pessoas muito interessantes. O rapaz de 17 anos que parece ter doze e fala com autoridade sobre jibóias escondidas entre o capim no riacho, cacaus clonados e bois bravos... O garotinho de 6, magrinho, perninhas finas e olhar curioso, que anda uma distância enorme pra ir à escola e não sabe como se faz uma cópia, lava os pratos no rio, toma carreira de vaca parida, quebra todos e ainda apanha por isso... A mãe de família que, apesar de ter sofrido a dor de perder dois filhos e precisar tomar uma batelada de comprimidos por dia (15, me disse ela), ainda ri e acolhe a todos com calor e alegria... O ex-garimpeiro, hoje zelador da igreja, que ganhou muito dinheiro, gastou tudo com mulheres, foi vítima da inveja dos amigos e perdeu até o terno de linho branco. São personagens inesquecíveis, são figuras que, despidas de todo glamour ou sofisticação nos ensinam lições que não vêm em livro nenhum.

Não sei se gostaria de morar na roça... Talvez minha alma seja viciada no caos urbano, se alimente de stress e agitação e não consiga suportar a solidão do silêncio, que vem junto com a noite cheia de estrelas. Mas com certeza eu queria muito poder me despir de todas essas cascas com as quais nos cobrimos, e ser capaz de apreciar toda a beleza que existe nas coisas simples.

Helena Meyer

26 Novembro 2006

1 Comments:

At 27/11/06 8:35 PM, Blogger Allê Barbosa said...

Uma árvore guardiã assiste a tudo...Fomos assistidos por uma dessas, e também por montanhas q vivem através dos milênios.
É um texto muito oportuno, mostra o quanto nos afastamos do que realmente importa, do se sentir feliz com pouco.
Parabéns...

 

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