Saturday, December 23, 2006

Salvemos os nossos rituais!!!

De uns tempos pra cá dei pra pensar em rituais. Tenho observado que estamos cercados por eles, sem nos darmos conta disso. Mas o que é mesmo um ritual? Num dicionário, li que a palavra significa liturgia, conjunto de práticas consagradas pelo uso e/ou por normas, e que se deve observar de forma invariável em ocasiões determinadas. Tem a ver com rito, que é qualquer cerimônia de caráter sacro ou simbólico, que segue preceitos estabelecidos.

Bem, essa definição me traz de volta o cheiro forte de incenso, o som arrastado dos cânticos entoados pelas mulheres e o sotaque carregado de um celebrante a dizer coisas que eu não entendia enquanto as pessoas se sentavam e se levantavam atendendo às ordens de alguém lá na frente da igreja. Quando criança costumava ir à missa com minha avó, que levava tudo isso extremamente a sério. E acho que essa idéia de ritual como coisa muito chata ficou na minha cabeça por muitos anos.

Hoje sei que existem outros rituais importantes, religiosos ou não: casamentos, formaturas, funerais, solenidades militares, posses de presidentes e governadores, aberturas de campeonatos de futebol, cerimônias secretas e obscuras, e todos eles são de domínio de um certo tipo de público, conduzidos coletivamente por todos aqueles que fazem parte da irmandade em questão. Participar de um ritual coletivo lhe faz pertencer a um grupo, seja por que você compreende os símbolos ou porque simplesmente está em conformidade com as normas e práticas. Por isso se dá tanta importância a eles.

Mas o que tem me chamado atenção ultimamente são outros tipos de rituais. São aqueles rituais privados, restritos a uma, duas ou pequenos grupos de pessoas. São aqueles desprovidos de muita pompa, realizados no dia-a-dia, sem muita preparação. Minha empregada quando chega em casa de manhã segue o mesmo ritual todos os dias: ela se benze, me dá bom-dia, lava as mãos, liga a televisão da cozinha, vai trocar de roupa, lava todos os pratos que estiverem na pia para depois então começar a sua rotina de trabalho. É sempre assim, há mais de 20 anos, e acho que nem ela mesma se dá conta de que nunca se benze depois de lavar as mãos ou troca de roupa antes de ligar a TV. Minha filha adolescente ao chegar da escola, deixa a mochila na mesa da sala, corre pro quarto e tira o jeans, que invariavelmente fica lá no chão mesmo (acho que essa é uma parte importantíssima do ritual...), deita na cama e liga pra melhor amiga, que acabou de ver há meia hora atrás. Tenho uma amiga que faz do banho ao fim do dia um verdadeiro ritual: regula a água sempre na mesma temperatura, entra em baixo do chuveiro e deixa a água morna escorrer pelo corpo por um bom tempo, lavando as mazelas de um longo dia de trabalho; depois lava os cabelos, se ensaboa vagarosamente, enxágua, passa óleo hidratante, tudo isso enquanto esvazia a cabeça de todo e qualquer tipo de problema. Só depois disso ela está pronta pra encarar os filhos, o marido, o jantar e o noticiário das oito. Ora, você pode dizer que são apenas ações rotineiras, mas eu insisto, são rituais. São práticas consagradas pelo uso, observadas de forma invariável e que significam muito pra quem as executa. Então se encaixam na definição do dicionário.

Existe ainda o ritual afetivo, amoroso. Esse é normalmente partilhado por duas ou três pessoas, e envolve muito mais sentimento do que inicialmente se supõe. Ele acontece quando a mãe coloca o filho pra dormir e pela milésima vez lhe conta a mesma história, exatamente da mesma maneira, antes de lhe dar o beijo de boa noite e apagar a luz. Está no abraço apertado de todas as manhãs do casal apaixonado, onde os dois trocam energias e se fortalecem para enfrentar mais um dia de trabalho, quando estarão longe um do outro. E também no brinde que os amigos fazem na mesa de um bar, na sexta à noite, celebrando o simples fato de estarem ali, juntos, e sem esquecer de dar um toquinho no gargalo da garrafa pra não secar a fonte. Esses rituais se repetem para consolidar as relações, sinalizar que está tudo conforme deveria estar, unir pessoas que se amam num gesto comum, único e partilhado. São muito importantes na construção da felicidade. São cruciais para manter as relações intactas e as certezas inabaladas. E para minha tristeza, tenho observado que estão ficando raros, diminuem de freqüência a cada dia. Não há mais tempo, paciência ou disposição para eles. Foram trocados por um beijo rápido, um tchau à distância ou um ‘a gente se fala depois no msn’. E a vida vai ficando mais pobre... as pessoas mais sós... o mundo mais triste.

Nessa época do ano, em que somos insistentemente convidados a pensar mais profundamente na vida, lembremos dos nossos rituais perdidos, e tentemos resgatá-los, mesmo que seja com uma nova roupagem, por que não? Talvez isso nos ajude a não chegar ao fim do próximo ano com aquela sensação de vazio de que nada foi feito, de que nada de bom nos aconteceu...

Helena Meyer
23 Dezembro 2006.