Friday, August 24, 2007

Bonfim nem um pouco light

Esta história se passa durante a Lavagem do Bonfim, evento religioso-carnavalesco que acontece em Salvador todos os verões e é ansiosamente esperado por turistas, devotos e cachaceiros de plantão. Os personagens principais são um jovem casal nativo dessa cidade doida. A publicitária Daniela é a mulher quase-perfeita: além de muito bonita e gostosa, é inteligente, bem-humorada, espirituosa, articulada e festeira. Adriano, professor universitário com um pé nas artes fotográficas e cinematográficas, também não é de se jogar fora – é um rapaz charmoso, com visão alternativa do mundo, um papo interessante e aquele jeito de menino perdido que derrete o coração de qualquer mulher. Os coadjuvantes dessa história são o sol, o calor, a fé, a festa, as baianas e os baianos.

Tudo começou no dia em que Adriano convidou Daniela pra ir com ele na festa do Bomfim. Isso é convite normal na vida de qualquer baiano, acostumado a essas celebrações sagradas e profanas. Não era a primeira vez que Dani (vamos chamá-la pelo seu apelido, que é como todos a conhecem) iria participar da festa. Afinal, na sua adolescência, ela não perdia um Bonfim Light, aquela festa cheia de menininhas lindas que não suam nem se despenteiam e de rapazes sarados com gel no cabelo, que tomam todas, perdem a linha, mas continuam se sentindo chiques e charmosos. Com o tempo, Dani se plantou, conheceu uma galera mais cabeça e passou a freqüentar a festa do Bonfim num esquema mais alternativo – com a galera cult da agência, ela sempre ficava na barraca da Rita, mulatona simpática que servia cerveja geladíssima e um arrumadinho pra ninguém botar defeito.

Adriano também era escolado nesse evento socio-cultural-místico-antropológico. Filho de Iansã, mas devoto aplicado de Oxalá, não perdia a festa por nada. Era uma obrigação: se não seguisse os quase 9 kilometros do cortejo, nada daria certo pra ele naquele ano. Ir atrás das baianas, entoar com elas o Hino do Senhor do Bonfim e os cânticos em Yorubá, cantar com a multidão o último sucesso do Chiclete, tomar banho de alfazema pra espantar qualquer mandinga ou mau-olhado, tudo isso era imprescindível para um tranqüilo desenrolar da vida. Claro que depois a coisa toda desaguava num porre fenomenal, porque afinal ninguém é de ferro, mas isso só lá, ao pé da Colina Sagrada, depois de cumpridos todos os rituais.

Pois bem, sob essas perspectivas um tanto diversas, lá se vão os dois Avenida Contorno abaixo, em direção ao ponto onde começa o cortejo sagrado, Dani no seu shortinho jeans e top curtinho, Adriano todo de branco, como manda a tradição. São 9 da manhã de um dia ensolarado que promete ser muito, muito quente. Dani questionou porque tão cedo, afinal pra ela o dia normalmente começa depois das 11. Responde Adriano que pra acompanhar o cortejo é preciso chegar cedo. OK, tudo bem, o amor faz essas concessões. De mãos dadas, juntam-se ao fluxo de pessoas que seguem na mesma direção. Baianas vestidas a rigor, com suas alvas rendas, na cabeça turbantes que parecem obras de arte equilibrando jarros floridos. Capoeiristas de calças brancas, andar leve e gingado, contas coloridas no pescoço e berimbau na mão. Negras senhoras, vestidos recatados, terços enrolados nos braços como se fossem pulseiras. Jovens mulatas gostosas, de mini-saia, bocas pintadas e perfume de flor. Negões lindos, cabelos trançados ou não, bermudas coloridas e torços nus. Turistas sorridentes, de olhar espantado e câmeras poderosas prontas a captar todo o espetáculo. Gente, gente de todo tipo e qualidade, todos com o mesmo propósito – cada um à sua maneira vai louvar o padroeiro da Bahia, Nosso Senhor do Bonfim.

O cortejo demora a sair. Conforme o costume, tudo que é marcado para as 10 só começa lá pelo meio dia. O sol se esforça pra brilhar com todo ardor, elevando a temperatura em muitos graus e fazendo a alegria dos vendedores de cerveja e água mineral, que circulam habilmente por entre o povo com enormes caixas de isopor na cabeça. A multidão, já meio impaciente, se aglomera num empurra-empura saudável e promíscuo, afinal é impossível evitar o contato físico naquela muvuca organizada. Finalmente ouve-se os cânticos das baianas, e lentamente, como uma grande serpente preguiçosa, a massa humana se move, emanando uma energia quente que é o resultado da fé devota, do desejo de participar, da curiosidade, da vontade de se divertir e do cheiro de suor.

O calor a essa altura beira os quarenta graus, esquenta as cabeças e sobe pelas pernas, vindo do asfalto pelando. Adriano, com os olhos semi-cerrados, testa molhada de suor, andar lento mas decidido, parece que vai entrar em êxtase a qualquer momento. Silenciosamente, vai lembrando de todos os pedidos que quer fazer ao seu protetor, dentre eles que conserve sempre a seu lado essa mulher maravilhosa. Dani também caminha lentamente, mas é como se suas pernas pesassem 20 quilos cada uma. O suor escorre pelas costas nuas, e ela sente que as três latinhas de Skol que bebeu enquanto esperava começam a fazer efeito. Está zonza, e com uma vontade horrível de ir ao banheiro. Além disso, está com fome, pois não teve tempo de tomar café, e quando fecha os olhos, só consegue se ver sentada na barraca de Rita, comendo arrumadinho. Adriano olha pra ela com carinho, pergunta se está tudo bem. Ela responde que está um pouco cansada, se dá pra eles pararem um pouquinho. Ele então argumenta que se pararem, vão se distanciar muito do cortejo. – "Vamos, minha linda, está pertinho, daqui a pouco estamos lá", diz ele. E de mãos dadas seguem, o amor faz essas concessões.

Uma hora depois, o cortejo ainda se arrasta. Já dá pra ver a Colina Sagrada, a igreja lá no alto, mas a essa altura, Dani não consegue nem pensar. O calor é insuportável, a cabeça dói, aquela música desafinada lhe irrita profundamente, e o cheiro de suor que paira no ar lhe revira o estômago. Procura Adriano, vê que ele já saiu do transe, e conversa animadamente com uma velha baiana que se afastou um pouco das suas companheiras. Tenta chamá-lo, mas a boca está seca, e a voz que sai é fraca, inaudível. A multidão avança, mas ela não. Adriano agora é apenas uma mancha branca, misturado com outras manchas brancas. A cabeça roda, as pernas não são suas. De repente, tudo se apaga... Como num filme, Dani sente que alguém lhe levanta do chão, braços fortes a carregam, e ela encosta a cabeça naquele peito, sentindo um cheiro forte de alfazema. Não quer abrir os olhos, tudo o que quer é sair daquele inferno. Agora sente que os braços salvadores lentamente lhe colocam no chão, o sol já não lhe queima os pensamentos, e um ventinho fresco sopra no seu rosto. Abre lentamente os olhos pra se ver em baixo de um grande tamarindeiro e encontrar o olhar profundo de Faísca, atento e preocupado, os lábios abertos num sorriso que mostram seus dentes alvos contrastando com a pele cor de chocolate. De novo o cheiro de alfazema, e ela lhe ouve dizer, numa voz rouca e mansa: -“E aí, princesa, tá tudo bem? Você apagou, ainda bem que desde a Conceição eu tava lhe filmando... Meu nome é Gervasio, mas a galera da capoeira me chama de Faísca. Quer uma água de coco?” Tudo o que ela conseguiu fazer naquele momento foi dizer que sim com a cabeça, que milagrosamente não doía mais. Sorriu, fechou novamente os olhos, e deitou a cabeça no ombro do seu salvador. Não se sabe o que aconteceu com Adriano, nem que conversa eles tiveram no dia seguinte, mas sabe-se que a publicitária Dani e o capoeirista Faísca passaram uma tarde bastante agradável, entre goles de água de coco, garfadas de arrumadinho, sorrisos abertos, afagos gentis e cheiro de alfazema.

Helena Meyer - Agosto de 2007

Monday, August 13, 2007

O menino e o trator

Era uma vez um menino que morava na roça, uma roça tão distante da cidade que tudo o que acontecia lá que não tinha a ver com galinhas, porcos, bois ou cavalos era um evento memorável.

Mesmo morando na roça, ou talvez por isso mesmo, o menino tinha a cabeça cheia de idéias mirabolantes. Sonhava muitas coisas, e tratava logo de torná-las realidade, de um jeito muito engenhoso e singelo. Ele adoraria que seu pai tivesse um carro, pra passear pelas estradinhas de barro, ir até a venda, e quem sabe passar um dia na cidade, desfilando pra baixo e pra cima, atrás dos ônibus e caminhões que rodavam por lá, a caminho de outras paragens. E quando chovesse, ele ficaria protegido dentro do carro, vendo a chuva se esparramar no pára-brisa, refletindo a luz dos faróis como se fossem mil caquinhos enquanto a névoa ia embaçando o vidro de dentro pra fora.

E esse carro existia, estacionado lá em baixo do cajueiro. As laterais eram um cercadinho feito com as tábuas que sobraram da construção do quartinho dos fundos, o teto era feito de lona escura, o pára-brisa, um pedaço de plástico transparente e o volante, a tampa de uma panela velha. Todo mundo podia entrar nesse carro, mesmo em dia de chuva, mas para isso ser possível era preciso estar em boas relações com o seu orgulhoso dono. Qualquer briga, mal-entendido ou pirraça era motivo suficiente para excluir amigos e vizinhos do privilégio de passear naquele milagre da tecnologia.

Sim, porque o menino era fascinado por tecnologia – tudo que tivesse engrenagem, motor, se movesse ou funcionasse de alguma maneira era motivo de curiosidade e observação atenta. E foi por isso que uma tragédia quase aconteceu. Um dia, a mãe do menino lhe pediu que olhasse a irmãzinha caçula, que estava tomando banho sentadinha numa bacia colocada sobre a mureta da varanda. Era coisa rápida, só enquanto ela ia buscar a toalha pra enxugar a menina. O menino, ciente da sua responsabilidade, chegou perto pra cumprir a ordem da mãe. Mas as tentações são imprevisíveis e irresistíveis. De repente ele ouviu um ronco de motor, e quando se virou pra olhar, lá estava um trator enorme, do tamanho de um dinossauro, com seu longo braço estendido pra frente, aplainando a terra, empurrando as pedras, preparando a estrada para receber mais uma camada de cascalho. Como perder esse espetáculo? Como não correr pra estrada pra ver passar essa criatura extraordinária que tinha pneus gigantescos, fazia um barulho ensurdecedor e exalava um cheiro de óleo queimado que ardia no nariz? Impossível, pelo menos pra o menino dessa história. Esquecido de sua tarefa, ele voou pra cancela e, com os olhos brilhando e o coração saltando no peito, concentrou toda a sua atenção naquela máquina poderosa. Quando voltou a vista pra mureta da varanda, não havia mais bacia, nem irmãzinha, nem nada... Só o choro agudo do bebêzinho estatelado no chão. Apavorado, o menino voltou correndo pra acudir, e deu de cara com sua mãe acalentando o bebê, que tinha um enorme galo na testa e berrava a plenos pulmões, tão alto que nem dava mais pra ouvir o ronco do trator se afastando lentamente.

-- Menino, eu não mandei você olhar sua irmã? O que deu na sua cabeça?!, pergunta a mãe, entre surpresa e zangada.

-- Mãe, foi o trator...

E mais nada precisou ser dito. Aquele trator passando ali na estradinha de barro causou no menino o mesmo impacto que um disco-voador causaria se aterrissasse no Maracanã. Hoje, já adulto, ele não se impressiona mais com tratores (e nem deixa mais bebês despencarem da mureta), mas ainda gosta de ver aviões levantando vôo, é fissurado por máquinas, sabe tudo sobre os sistemas de esgoto de Paris e está a par de todas as descobertas tecnológicas que aparecem. Quanto à irmãzinha, bem, ela ainda tem dois calombinhos na testa e se tornou surfista, pois cair na água não dói.

Helena Meyer
Agosto de 2007