Wednesday, May 16, 2007

O menino e as formigas



Era uma vez um menininho que morava com seu pai, sua mãe e suas irmãs. Todos os dias, seu pai ia trabalhar na roça, e lá ficava o dia inteiro. O menininho era quem levava o almoço do pai, na marmita bem areada enrolada num pano branco. Lá ia ele, olhinhos de ver o mundo, cabeça cheia de sonhos de guitarras feitas de tábua e caixa de fósforo, perninhas finas e ligeiras que atravessavam o pasto até chegar na cancela que dava passagem pra roça de cacau. O pasto era claro, ensolarado e quente, mas a roça era um labirinto sombrio e fresco, com cheiro de umidade das folhas mortas que formavam um tapete avermelhado e escondiam o perigo de cobras, aranhas e escorpiões. O menininho sabia onde ir, ele nunca errava a direção, e levava muito a sério aquela importante tarefa, pois, como dizia sua avó, saco vazio não pára em pé, e seu pai precisava comer.

E assim foi naquele dia – ele passou pelo pasto, entrou roça adentro até encontrar seu pai, e esperou sentado em baixo de um pé de cacau enquanto ele comia. Essa era a melhor hora, pois o menino adorava ouvir as conversas dos homens que descansavam os músculos e exercitavam a imaginação, contando casos de valentia e inventando histórias fantásticas. Nesse dia, o menininho nada disse, apenas se admirou em saber que Seu Quirino, aquele velho que morava sozinho no alto do morro, já tinha matado três onças ao mesmo tempo, com uma só bala de espingarda. ‘Cabra retado esse Quirino’, era o que seu pai sempre dizia...

Chegou a hora de voltar pra casa, era mais ou menos uma da tarde. O sol estava forte, mas não conseguia passar por entre as folhagens de maneira plena, só lançando lampejos de luz aqui e ali, que se moviam ao sabor do balanço das folhas. O menininho iniciou sua jornada de volta, como sempre fazia, caminhando por entre as árvores e olhando pro chão, pra não tropeçar em algum toco ou pisar num bicho escondido. Foi aí que ele viu uma coisa que nunca tinha visto antes: o chão estava se mexendo, borbulhava como pó de café recebendo a água fervendo no velho coador lá da cozinha. Quando apurou a vista, viu que estava sobre um mar de formigas. O chão não tinha folhas, não tinha terra, só formigas, formigas vermelhas e enormes que brotavam do nada e andavam em todas as direções... pra qualquer lado que olhasse, lá estavam elas, patas e ferrões prontos a subir pelas suas pernas, entrar pela sua roupa e picar todo o seu corpo. Foi aí que ele começou a correr. Suas pernas pareciam ligadas no motor da máquina de moer cana, moviam-se sem parar. A cabeça era um turbilhão, o coração afundou no estômago e parou de bater, e ele só corria, corria, corria... aquela quantidade toda de formigas podia levá-lo pra dentro do formigueiro e devorá-lo inteirinho, não iam sobrar nem os ossos... Um século se passou até ele chegar na cancela do pasto. Lá o capim era baixo, o céu aberto e a luz clara. O menininho parou de correr, e olhou pra suas pernas magras, esperando vê-las cobertas de formigas presas com seus ferrões à sua carninha pouca. Mas não havia nada, as pernas estavam somente sujas de terra, um arranhãozinho aqui, outro ali, resultados da carreira desabalada pela roça de cacau. Dentro de sua cabeça, o coração batia como um grande tambor, lento, pesado, profundo. E ele se perguntou se realmente aquelas formigas estavam ali, se elas tinham existido de verdade, ou só na sua cabecinha cheia de imagens. E até hoje ele não sabe a resposta, mas uma coisa ele aprendeu: no meio do formigueiro, a melhor coisa a fazer é correr primeiro e pensar depois...


Helena Meyer - 16 Maio 2007