Bonfim nem um pouco light
Esta história se passa durante a Lavagem do Bonfim, evento religioso-carnavalesco que acontece em Salvador todos os verões e é ansiosamente esperado por turistas, devotos e cachaceiros de plantão. Os personagens principais são um jovem casal nativo dessa cidade doida. A publicitária Daniela é a mulher quase-perfeita: além de muito bonita e gostosa, é inteligente, bem-humorada, espirituosa, articulada e festeira. Adriano, professor universitário com um pé nas artes fotográficas e cinematográficas, também não é de se jogar fora – é um rapaz charmoso, com visão alternativa do mundo, um papo interessante e aquele jeito de menino perdido que derrete o coração de qualquer mulher. Os coadjuvantes dessa história são o sol, o calor, a fé, a festa, as baianas e os baianos.
Tudo começou no dia
Adriano também era escolado nesse evento socio-cultural-místico-antropológico. Filho de Iansã, mas devoto aplicado de Oxalá, não perdia a festa por nada. Era uma obrigação: se não seguisse os quase 9 kilometros do cortejo, nada daria certo pra ele naquele ano. Ir atrás das baianas, entoar com elas o Hino do Senhor do Bonfim e os cânticos em Yorubá, cantar com a multidão o último sucesso do Chiclete, tomar banho de alfazema pra espantar qualquer mandinga ou mau-olhado, tudo isso era imprescindível para um tranqüilo desenrolar da vida. Claro que depois a coisa toda desaguava num porre fenomenal, porque afinal ninguém é de ferro, mas isso só lá, ao pé da Colina Sagrada, depois de cumpridos todos os rituais.
Pois bem, sob essas perspectivas um tanto diversas, lá se vão os dois Avenida Contorno abaixo, em direção ao ponto onde começa o cortejo sagrado, Dani no seu shortinho jeans e top curtinho, Adriano todo de branco, como manda a tradição. São 9 da manhã de um dia ensolarado que promete ser muito, muito quente. Dani questionou porque tão cedo, afinal pra ela o dia normalmente começa depois das 11. Responde Adriano que pra acompanhar o cortejo é preciso chegar cedo. OK, tudo bem, o amor faz essas concessões. De mãos dadas, juntam-se ao fluxo de pessoas que seguem na mesma direção. Baianas vestidas a rigor, com suas alvas rendas, na cabeça turbantes que parecem obras de arte equilibrando jarros floridos. Capoeiristas de calças brancas, andar leve e gingado, contas coloridas no pescoço e berimbau na mão. Negras senhoras, vestidos recatados, terços enrolados nos braços como se fossem pulseiras. Jovens mulatas gostosas, de mini-saia, bocas pintadas e perfume de flor. Negões lindos, cabelos trançados ou não, bermudas coloridas e torços nus. Turistas sorridentes, de olhar espantado e câmeras poderosas prontas a captar todo o espetáculo. Gente, gente de todo tipo e qualidade, todos com o mesmo propósito – cada um à sua maneira vai louvar o padroeiro da Bahia, Nosso Senhor do Bonfim.
O cortejo demora a sair. Conforme o costume, tudo que é marcado para as 10 só começa lá pelo meio dia. O sol se esforça pra brilhar com todo ardor, elevando a temperatura em muitos graus e fazendo a alegria dos vendedores de cerveja e água mineral, que circulam habilmente por entre o povo com enormes caixas de isopor na cabeça. A multidão, já meio impaciente, se aglomera num empurra-empura saudável e promíscuo, afinal é impossível evitar o contato físico naquela muvuca organizada. Finalmente ouve-se os cânticos das baianas, e lentamente, como uma grande serpente preguiçosa, a massa humana se move, emanando uma energia quente que é o resultado da fé devota, do desejo de participar, da curiosidade, da vontade de se divertir e do cheiro de suor.
O calor a essa altura beira os quarenta graus, esquenta as cabeças e sobe pelas pernas, vindo do asfalto pelando. Adriano, com os olhos semi-cerrados, testa molhada de suor, andar lento mas decidido, parece que vai entrar em êxtase a qualquer momento. Silenciosamente, vai lembrando de todos os pedidos que quer fazer ao seu protetor, dentre eles que conserve sempre a seu lado essa mulher maravilhosa. Dani também caminha lentamente, mas é como se suas pernas pesassem 20 quilos cada uma. O suor escorre pelas costas nuas, e ela sente que as três latinhas de Skol que bebeu enquanto esperava começam a fazer efeito. Está zonza, e com uma vontade horrível de ir ao banheiro. Além disso, está com fome, pois não teve tempo de tomar café, e quando fecha os olhos, só consegue se ver sentada na barraca de Rita, comendo arrumadinho. Adriano olha pra ela com carinho, pergunta se está tudo bem. Ela responde que está um pouco cansada, se dá pra eles pararem um pouquinho. Ele então argumenta que se pararem, vão se distanciar muito do cortejo. – "Vamos, minha linda, está pertinho, daqui a pouco estamos lá", diz ele. E de mãos dadas seguem, o amor faz essas concessões.
Uma hora depois, o cortejo ainda se arrasta. Já dá pra ver a Colina Sagrada, a igreja lá no alto, mas a essa altura, Dani não consegue nem pensar. O calor é insuportável, a cabeça dói, aquela música desafinada lhe irrita profundamente, e o cheiro de suor que paira no ar lhe revira o estômago. Procura Adriano, vê que ele já saiu do transe, e conversa animadamente com uma velha baiana que se afastou um pouco das suas companheiras. Tenta chamá-lo, mas a boca está seca, e a voz que sai é fraca, inaudível. A multidão avança, mas ela não. Adriano agora é apenas uma mancha branca, misturado com outras manchas brancas. A cabeça roda, as pernas não são suas. De repente, tudo se apaga... Como num filme, Dani sente que alguém lhe levanta do chão, braços fortes a carregam, e ela encosta a cabeça naquele peito, sentindo um cheiro forte de alfazema. Não quer abrir os olhos, tudo o que quer é sair daquele inferno. Agora sente que os braços salvadores lentamente lhe colocam no chão, o sol já não lhe queima os pensamentos, e um ventinho fresco sopra no seu rosto. Abre lentamente os olhos pra se ver em baixo de um grande tamarindeiro e encontrar o olhar profundo de Faísca, atento e preocupado, os lábios abertos num sorriso que mostram seus dentes alvos contrastando com a pele cor de chocolate. De novo o cheiro de alfazema, e ela lhe ouve dizer, numa voz rouca e mansa: -“E aí, princesa, tá tudo bem? Você apagou, ainda bem que desde a Conceição eu tava lhe filmando... Meu nome é Gervasio, mas a galera da capoeira me chama de Faísca. Quer uma água de coco?” Tudo o que ela conseguiu fazer naquele momento foi dizer que sim com a cabeça, que milagrosamente não doía mais. Sorriu, fechou novamente os olhos, e deitou a cabeça no ombro do seu salvador. Não se sabe o que aconteceu com Adriano, nem que conversa eles tiveram no dia seguinte, mas sabe-se que a publicitária Dani e o capoeirista Faísca passaram uma tarde bastante agradável, entre goles de água de coco, garfadas de arrumadinho, sorrisos abertos, afagos gentis e cheiro de alfazema.
Helena Meyer - Agosto de 2007